O cantor que mais gravou discos no Brasil: A extensa (e oculta) produção de Josué Barbosa Lira

Carlos Henrique Silva
6 min readJun 15, 2019

Carlos Henrique Silva — jornalista e designer freelancer, para a fanpage em homenagem ao cantor

Você conhece algum cantor que gravou mais de 100 discos no Brasil?

136 LPs, 17 discos compactos e um sem número de CDs e discos de 78 rpm. O que parece a pequena coleção de algum discófilo, na verdade é a discografia de um dos artistas que mais gravaram na música evangélica brasileira, e que passa despercebido inclusive em seu segmento. Trata-se de Josué Barbosa Lira, um baiano que contribuiu para a “virada” no estilo musical e a consolidação em diversos ritmos, antes incomunicáveis com o chamado “louvor sacro”.

Quem foi Josué Lira?

O pouco que sabemos da biografia é de um Josué Lira que, natural da cidade de Condeúba em 1933, chega em São Paulo aos 16 anos de idade, tentando se enveredar no ramo da Química. Mas depois de se descobrir na Música, se torna cantor de boates e clubes noturnos. Uma vida que teve sua virada no início dos anos 60, com a conversão para a fé evangélica e uma jornada artística totalmente diferente da que vivia até então.

A produtiva discografia

Quase nenhuma explicação também encontramos para o motivo de uma produção tão numerosa, uma discografia que se compara a grandes artistas campeões de gravações, como Tonico & Tinoco, Ângela Maria ou Nelson Gonçalves. Em suas épocas mais produtivas, Josué gravava em média 9 LPs por ano, saindo por diversas gravadoras de destaque como Louvores do Coração, Bandeira Branca, Bom Pastor, Doce Harmonia, Califórnia e Recanto dos Evangélicos, além de muitas outras sem expressão.

De acordo com amigos, familiares e colecionadores que procuramos, muitos destes selos enriqueciam com a popularidade do cantor e compositor, e por isso ele teve muitas perdas nas constantes mudanças de empresas. Isto também pode explicar a rejeição da família em publicar ou digitalizar tão vasto acervo. Mas na época, nada disso parecia abalar o Josué, motivado pela necessidade de comunicar a mensagem evangélica em qualquer estúdio e microfone que lhe desse espaço.

O cantor pernambucano Marcos Silva, com mais de 40 anos de carreira, compartilha a lembrança da amizade cultivada com Josué Barbosa Lira e João Quintino da Silva, outro grande parceiro do cantor nas composições, e igualmente desvalorizado em seu legado. Marcos lembra do apoio que recebeu destes cantores quando chegou a São Paulo, no encaminhamento aos estúdios e financiamento de lançamentos e revelação de talentos.

“Acompanhei Josué Barbosa Lira até nas últimas idas dele à igreja, inclusive na última apresentação no Belenzinho, em um Encontro de Pastores, que foi a coisa mais linda do mundo. Ele cantou três hinos, e o último hino foi aquele ‘Conforme a tua infinita graça, ó Pai, perdoa a minha transgressão...’ Dias depois, ele começou a ter uma dor de cabeça muito forte que não passava, e a esposa levou para o médico; foi quando veio o diagnóstico de um tumor na cabeça. Chegou a operar mas não deu certo, e ele veio a falecer três meses depois.”

Estilo eclético e a dificuldade de autoria

Uma das sensações de quem ouve Josué Lira pela primeira vez é a interessante mistura de ritmos em suas produções, que passam por country, marcha, guarânia, valsa, rock, jazz, blues, dentre outros.

Quem tem familiaridade com a música evangélica antiga também pode se surpreender com a versatilidade do cantor em fazer adaptações de músicas já conhecidas no imaginário evangélico e presentes especialmente na cultura das igrejas pentecostais (os chamados corinhos). São músicas de origem desconhecida e emergidas de comunidades simples, feitas por compositores que abrangiam desde pastores, líderes de congregações a lavadeiras e pedreiros.

Há, entretanto, um problema ao creditar a autoria de grande parte das músicas, falha comum nas gravadoras evangélicas da época. Muitas gravações não trazem os seus compositores ou somente figuram como ‘adaptação de Josué Lira’. Uma mesma música do tipo marchinha, gravada em um álbum, ganha em outras gravações novas estrofes, ritmos, medleys e o que pudesse vir na criatividade do cantor, como gravar em dupla consigo mesmo.

A impressão que se dá é de um intérprete que se sentia livre para criar e experimentar estilos, indo do mais simples até aproveitar sucessos de grandes nomes como Ozeias de Paula, Edison Coelho e Luiz de Carvalho.

Toda essa produtividade com base na oralidade leva-nos a pensar em quais gravações seriam da criatividade de Josué (que segundo outros cantores e produtores compunha canções até no estúdio de gravação), e quais seriam adaptações de louvores que já existiam.

O contexto

Devemos pensar a carreira de Josué Barbosa Lira no contexto dos cantores evangélicos dos anos 70 e 80, que viviam uma transição entre a música de tom mais sacro (estilo de corais tradicionais) para as influências do que antes se consideravam ritmos profanos, utilizando instrumentos como violão, guitarra e bateria.

Esta época já vivenciava uma grande quantidade de gravadoras e lojas de artigos evangélicos, concentradas especialmente na Rua Conde de Sarzedas, no centro de São Paulo. A explosão de cantores, vindos de todo lugar para gravarem em estúdios que funcionavam quase 24 horas por dia, encontrava divulgação nos programas de rádio e cruzadas ao ar livre, e assim existia um terreno fértil para produzir.

Um compositor e intérprete de recordes

Além da grande quantidade de discos lançados, outras marcas da liberdade de Josué Lira eram no tempo e nos temas de suas gravações. Uma das de maior destaque é a música “Terra que mata os profetas”, com 15 estrofes e quase 17 minutos de duração, tomando todo o lado A do disco de mesmo nome. A letra é bem típica da doutrina pregada pelos evangélicos de então: televisão, teatro, cinema, liberação nos costumes e outros diversos contextos que começavam a fazer parte das casas e igrejas.

Em outra gravação, “Agradecimento aos Pastores”, o cantor faz uma grande homenagem aos líderes das Assembleias de Deus em todo o Brasil, estado por estado, nome por nome. Esta música está no 100º LP gravado pelo cantor, traz 13 estrofes e 9 minutos de duração.

Homenagem Póstuma

A partida quase que repentina do cantor pode ser o motivo de uma desvalorização de seu acervo e da sua importância para a música evangélica. Infelizmente, também não estão disponíveis registros em áudio e vídeo de suas apresentações nas igrejas. Atualmente, o resgate desta memória é feito apenas por fãs e colecionadores.

Em 2007, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou o Projeto de Lei do vereador Adolfo Quintas, de homenagem ao cantor e compositor, denominando Praça Comendador Josué Barbosa Lira uma praça no bairro Parque Sônia, Distrito de São Miguel Paulista. A praça fica na esquina das Ruas Tristão José Teixeira e João Felisberto Moreira.

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Carlos Henrique Silva

Jornalista e Designer Gráfico, com experiência em comunicação corporativa, terceiro setor e redes sociais